POR QUE EU GOSTO DA MÚSICA DE JOHANN SEBASTIAN BACH (Francisco Cribari)


Ao longo dos anos eu desenvolvi forte ligação com a obra musical do músico alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750). Embora eu goste da música de outros compositores, como Beethoven, Brahms, Purcell, por exemplo, não há como negar que a impressão que Bach causa sobre mim é a mais profunda. Recentemente tentei refletir sobre essa preferência. Abaixo se encontram alguns pensamentos pontuais que resultaram de tal reflexão.


1) Bach não criou nada novo, nem se propôs a tal. Mesmo assim, seu impacto no curso da música foi imenso. (Seria possível, entretanto, postular que ele criou a forma de concerto para piano, que se tornou tão popular mais tarde, com seu Concerto de Brandenburgo Número 5, onde é aberto espaço para execução solo de um cravo.) Há muitos aspectos que podem ser citados, mas eu me restringirei a dois.


Primeiro, antes de Bach havia vários estilos de música (italiano, francês, alemão, etc.), que eram desenvolvidos de forma paralela. Ele uniu esses estilos num só e, após ele, havia apenas música. Buxtehude fez o mesmo, em certa extensão, mas não teve o mesmo sucesso nem o mesmo impacto no curso subsequente da musica. Bach também sumarizou o que veio antes dele em sua obra e, nela, lançou as bases para o que viria depois, tanto que continua atual mais de 250 anos após sua morte. Ele foi, simultaneamente, o grande sumarizador e o grande profeta. Cito uma entrevista do pianista João Carlos Martins de 2004, onde ele disse o seguinte: "Bach fez a síntese de tudo o que aconteceu na música antes dele e fez a profecia de tudo o que veio a acontecer depois dele. Ele foi o pai da globalização. Essa é a razão por que, agora, estou gravando 12 CDs (dois em cada continente) para mostrar o Bach global. No Brasil, Villa-Lobos pôde fazer as Bachianas Brasileiras; jamais poderia fazer as 'mozartianas brasileiras', não dava o link. Então, Bach é o pai da obra clássica, romântica, impressionista, moderna, do jazz, de tudo, entende? Tudo, na música, veio por causa de Bach. Ele é a catedral e os outros são as grandes igrejas."


Segundo, ele teve um papel decisivo na adoção do sistema de afinação por temperamento igual, que existia apenas como uma conjectura teórica. Ele colocou esse sistema à prova e mostrou ao mundo que essa afinação era viável. E ela impera até hoje. Para se ter dimensão do impacto de Bach neste campo, a BBC apresentou uma série de cinco documentários sobre os cinco eventos mais marcantes da história da música; um dos episódios foi sobre o sistema de temperamento igual e ele foi, em grande parte, dedicado a Bach. (Os cinco eventos: a invenção da notação musical, a invenção da ópera, a invenção do temperamento igual, a invenção do piano, a invenção do som gravado. Howard Goodall, que produziu a série, chega a afirmar que a invenção do temperamento igual é, provavelmente, o mais importante dos cinco eventos, todos qualificados como "Big Bangs".)


2) Ninguém uniu composição artística e composição de peças didáticas numa entidade única como Bach. Muitas de suas obras de maior teor artístico foram compostas com propósitos didáticos, sendo peças que se destinavam a treinar e a ensinar alunos sobre composição e execução musical.


3) A música de Bach, mais do que a de qualquer outro compositor, possui elasticidade tal, apesar de seu aspecto arquiquetural, que permite que ela seja executada em outros estilos musicais e até mesmo fundida com outras formas musicais. (Esse argumento, aliás, não é meu; é do John Eliott Gardiner.) Há gravações de Bach em formato de jazz (e.g., Jacques Loussier Trio), rock, etc. A música de Bach foi até fundida, no Brasil, com a música popular nordestina na construção do Movimento Armorial. (Antônio Nóbrega, por exemplo, era violinista especialista em Bach quando ingressou no Movimento Armorial.) No trio elétrico de Daniela Mercury no carnaval de 2005, em Salvador, havia um pianista fundindo composições de Bach com o ritmo de axé. João Carlos Martins chega a afirmar que "Bach é o compositor que dá liberdade para que você possa colocar sua individualidade mais do que outros compositores. Bach é aquele compositor que obriga você a respeitar a personalidade dele, mas que permite que você possa colocar a sua individualidade."


4) Bach continua a influenciar, de forma profunda, músicos das mais variadas vertentes. Para citar um músico não-erudito, Tom Zé passou muito tempo estudando a música de Bach. Para citar compositores eruditos, Villa-Lobos foi muito influenciado por Bach (chegando a compor As Bachianas Brasileiras), como foram Schoenberg (para esse a música de Bach foi determinante em sua composição), Webern e outros. Até mesmo a música armorial nordestina sofreu - e sofre - influência substancial de Bach. A influência de Bach sobre as artes vai até mesmo além do campo da música. A obra do artista plástico Paul Klee foi fortemente influenciada pela obra de Bach, em particular pela Arte da Fuga, como revela Gunther Regel no ensaio intitulado O Fenômeno Paul Klee.


5) Ludwig van Beethoven é outro compositor que admiro, por razões bem distintas das que me levam a apreciar a obra de Bach. A influência que este exerceu sobre aquele é típica do modo como aprendemos a apreciar o grande mestre do Barroco tardio. Beethoven teve contato com a música de Bach cedo, na juventude. Em particular, o primeiro livro do Cravo Bem Temperado foi muito estudado por Beethoven. Sua obra foi eminentemente romântica, mas no ocaso de sua vida houve uma forte guinada em direção a Bach. Esse retorno a Bach é descrito, por exemplo, por Lewis Lockwood (professor emérito de Harvard), em seu livro "Beethoven: a Música e a Vida". O ponto central aqui é que a música de Bach não é de fácil digestão. Às vezes demoramos muito para aprender a apreciá-la e para reconhecermos sua dimensão estelar.


6) A tônica central da música de Bach, no meu entender, não é religiosa. Tanto que sou ateu e ela tem muito apelo para mim. O traço religioso de sua obra é o mais superficial. Sua música trata, em última instância, da solidão humana. Octavio Paz, no ensaio intitulado A Dialética da Solidão, escreve: "Todos os homens, em algum momento da vida, sentem-se sozinhos; e mais: todos os homens estão sós. Viver é nos separarmos do que fomos para nos adentrarmos no que vamos ser, futuro sempre estranho. A solidão é a profundeza última da condição humana. (...) Nascer e morrer são experiências de solidão. Nascemos sozinhos e morremos sozinhos." Octavio Paz tem razão: a solidão é o maior delineador da existência humana. A música de Bach, passado seu aspecto religioso superficial, trata da solidão do homem.


7) Um aspecto da música de Bach que me emociona muito é que ela busca a diversidade máxima dentro de uma unidade. Obras como As Variações Goldberg e o próprio Cravo Bem Temperado são os melhores exemplos disso. Na primeira, há 30 variações diferentes de uma ária que, no fundo, têm uma unidade. (E terminam como começaram: com a ária. Nossas vidas têm a mesma "dinâmica oroborus" com o nascimento e a morte.) Na segunda, temos uma coleção de 48 prelúdios e fugas com as mais diferentes características, todas dentro de uma unidade bem delineada. (Adicionalmente, prelúdios e fugas, compostos em pares na mesma nota nesta obra, são marcantemente diferentes em natureza.) E é assim que a vida humana, ao largo, deveria ser: uma grande diversidade harmoniosa. A música de Bach exalta esse mundo ideal.


8) A ênfase da música de Bach reside na harmonia e não na construção de melodias que buscam agradar ao ouvido humano. Ou seja, a ênfase é na harmonização de diferentes melodias. No meu entender, essa é uma tarefa mais edificante do que a busca de construções melódicas. (Em tempo: Bach era capaz de compor melodias cativantes; para notar isso, basta escutar Jesus Alegria dos Homens. Mas esse não era seu propósito nem seu desafio como compositor.)


9) A aptidão de Bach para a música de contraponto foi inigualável. Por exemplo, em seu famoso encontro com Frederico O Grande, ele compôs de improviso, sentado ao cravo, uma fuga em seis vozes. Acho que muitas pessoas não têm idéia do que isso significa. Basta dizer que Bach nunca havia composto uma fuga a seis vozes para teclado e que no Cravo Bem Temperado, que consiste de 48 fugas, só há duas em cinco vozes. Na analogia feita por Douglas Hofstadter, em seu livro "Godel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid", o feito de Bach equivale a jogar e vencer 60 partidas simultâneas de xadrez com os olhos vendados.


10) O compromisso de Bach com sua arte foi inabalável. Ao longo de sua vida, ele se envolveu em disputas com alunos, membros da igreja (durante o período em que viveu em Leipzig) e colegas músicos, sem nunca abrir mão do propósito traçado para sua vida de compositor. Chegou a ser qualificado de ultrapassado e acusado de produzir música demasiadamente complexa, de difícil execução e, até mesmo, desinteressante. Nenhum de seus contemporâneos resistiu, todavia, à prova do tempo como Bach. Sem nunca sair da Alemanha e resistindo a modismos, ele estava compondo música verdadeiramente universal e atemporal.


11) A música de Bach contém uma forte ligação com a Matemática. Essa ligação é feita sem detrimento do conteúdo artístico; pelo contrário, música e números se mesclam numa entidade única, alcançando profundezas artísticas antes impensáveis. O conteúdo matemático nem sempre é evidente. De acordo com o matemático e filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz: "Music is the hidden arithmetical reckoning of the unconscious spirit." Se assim for, poucos músicos se igualam a Bach. Um exemplo é a Ciaccona (BWV 1004), composta quando do falecimento de sua primeira esposa, Maria Barbara, em 1720. Um texto belamente criptografado nesta peça somente foi desvendado em 1994, a descoberta cabendo à professora Helga Thoene, da Universidade de Dusseldorf. Ela mostrou que a Ciaccona é, de fato, um epitáfio em forma musical, por conter um texto escondido/codificado nas notas musicais. As duas gravações que possuo dessa partita para violino acompanhada de coral cantando o texto desvendado me proporcionam algumas das mais profundas e comoventes emoções que senti nos últimos anos.


12) Para um ateu, a vida não possui significância especial e todos nós, seres humanos, somos o produto de dois elementos básicos: chance e evolução. A vida, seja ela material ou espiritual, acaba com a morte. Não há esquemas grandiosos que conferem à nossa existência significância particular, sejam eles de ordem divina ou de qualquer outra natureza. Como ateu, preciso encontrar alguma unidade, alguma estrutura no mundo que me cerca, algum esquema encadeado de coisas, fatos, eventos. Não posso buscar tal estrutura, infelizmente, na religião. A arte de Bach me fornece esse mundo, permeado por harmonias e simetrias matemáticas. Cada nota tem seu lugar, cada peça musical possui encadeamento lógico. A razão conduz à beleza; a beleza não é o objetivo final da expressão artística, esse objetivo sendo sua construção a partir da razão. A expressão artística passa a ser um espelho da harmonia celestial. Para mim, isso é um conforto frente à inexistência de Deus. (Talvez pela mesma razão eu aprecie tanto as xilogravuras de Gilvan Samico.)


É difícil saber por que um determinado compositor nos tem tanto apelo. Os aspectos elencados acima são os que me vêm à mente quando penso em Bach. Há outros compositores que me tocam, Beethoven sendo aquele que segue Bach. As sinfonias, sonatas e concertos para piano de Beethoven são obras ímpares, a Nona Sinfonia possuindo lugar de destaque. Todavia, a obra de Beethoven não causa em mim impacto igual àquele causado pela música de Bach. Dois exemplos pontuais e sem valor comparativo geral: recentemente escutei na mesma noite As Variações Diabelli (Beethoven) e As Variações Goldberg (Bach); na noite seguinte escutei A Missa Solene (Beethoven) e A Missa em Si Menor (Bach). Em ambos os casos as composições de Bach despertaram em mim sentimentos mais diversos e mais profundos do que as correspondentes composições de Beethoven. Citando novamente João Carlos Martins (novamente de sua entrevista de 2004): "O Pelé foi lá em casa e nós tivemos um papo. Eu falei: 'Pelé, você sempre fala nas entrevistas que Deus criou Beethoven pra música e Pelé pro futebol. Da próxima vez, você pode falar que Deus criou Bach pra música e Pelé pro futebol porque Beethoven é um Maradona. É um grande compositor, mas é um Maradona!'."


Em suma, a música de Bach tem assumido um papel central em minha vida. Johann Sebastian Bach foi o maior compositor de todos os tempos? Não sei. Imagino que em alguma(s) métrica(s) sim e em outras talvez não. Mas, no fundo, isso não me interessa. O fundamental para mim é que sua música torna minha breve existência menos angustiante.